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segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Antropólogo: No poder, Dilma terá Lula como "marido virtual"

Para o antropólogo Roberto Albergaria, Lula sai com popularidade alta porque soube encarnar o "bom selvagem" e o "ex-pobre". "O povo brasileiro é traíra e camaleão igual a Lula", diz.
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Terra Magazine: Por Claudio Leal 
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Na primeira semana do novo governo, o antropólogo Roberto Albergaria faz uma análise inusitada da aliança entre Dilma Rousseff e o antecessor Luiz Inácio Lula da Silva: a presidente terá o padrinho político como "marido virtual" no imaginário brasileiro. Doutor em Antropologia pela Universidade de Paris VII e professor aposentado da Universidade Federal da Bahia, Albergaria compara os petistas ao casal Kirchner, na Argentina.
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- Ele vai ser o presidente simbólico do Brasil, o anjo da guarda de Dilma. É como se ela fosse a mãe do Brasil e Lula, o pai do Brasil. É um casal perfeito. Lula e Dilma funcionam como um casal. É como Néstor Kirchner e Cristina Kirchner... Ele é o marido virtual de Dilma, até que a mídia canse dele, o que vai levar algum tempo.
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Ex-militante do grupo armado PCBR, de 1969 a 1971, e exilado em Paris nos anos 70, Roberto Albergaria avalia que o passado de guerrilheira não marcará a imagem de Dilma na presidência.
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- A guerrilha não fede nem cheira. A guerrilha nunca entrou no imaginário popular.
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Para o antropólogo, Lula deixa o governo com alta popularidade porque soube encarnar dois papéis: o de "bom selvagem" e o de "ex-pobre", contrariando o roteiro traçado pela esquerda da USP (Universidade de São Paulo) nos anos 80.
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- Não é apenas um pobre que está no poder, é o emergente que chegou lá, o pobre que deu certo. O povo se identifica com Lula porque ele chegou lá com todas as tramóias possíveis. O pobre não é tão bonzinho quanto se imagina. Isso realmente foi uma grande mudança retórica. Até Fernando Henrique, você só tinha o falar bonito das elites. Lula não fez mudança nenhuma no sentido político. Ele aprofundou a lógica da social-democracia.
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Confira a entrevista.
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Terra Magazine - Depois de oito anos de poder, Lula fez a sucessora e saiu com quase 90% de popularidade. Qual é o borogodó? O que explica o sucesso político de Lula?
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Roberto Albergaria - Primeiro, a barriga. O pessoal de marketing tem isso: o fator barriga. Barriga cheia. E a conjuntura internacional ajudou a ascensão da classe C. Para ele, virtù é muito mais do que no sentido normal de Maquiavel - é competência e ousadia. A fortuna é o acaso. Os cientistas políticos, por quererem ser muito cientificistas, às vezes buscam explicar o que não é racionalizável. A sorte vem buscando Lula desde que ele nasceu. A sorte de ter estado no momento certo no lugar certo, nas conjunturas favoráveis. Além do nascimento, a migração, o fato de ter chegado a São Paulo no momento em que a indústria automobilística estava crescendo, de ele ter se tornado o "bode exultório" - o contrário do "bode expiatório" - de uma esquerda da abertura, que ainda tinha uma consciência pesada com o que ela fez na época da luta armada.
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É o mesmo da figura do Lech Walesa (político polonês, fundador do sindicato Solidariedade), que foi uma outra coisa em relação ao comunismo. Lula é uma figura popular sem os ranços da esquerda tradicional, do Partidão politicista ou belicoso dos revolucionários. Ele foi escolhido pela inteligência, pelos intelectuais paulistas, para representar o "bode exultório". Ele encarnou uma tradição da esquerda brasileira e, por ser pobre, reativou o mito do bom selvagem. No Brasil, as desigualdades criam uma série de hábitos mentais. Para a esquerda paulista, o Nordeste é mítico. Fernando Henrique Cardoso, Sérgio Buarque de Hollanda, Plínio de Arruda Sampaio e todos os bem pensantes projetaram em Lula as esperanças de uma esquerda. E a mídia embarcou.
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Mas, no poder e mesmo antes de chegar à presidência, Lula se afastou dessa imagem criada pela esquerda, não?
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É a habilidade de camaleão. Por ser pobre, ele sempre se virou bem nas circunstâncias. A primeira imagem dele foi construída de cima pra baixo, nos anos 80, pelos intelectuais paulistas. Na época, tinha o obreirismo e o pauperismo, o mito do trabalhador, do pobre, do nordestino. Ele veio desse capital simbólico inicial, não só dos intelectuais da academia, mas dos jornais também. Quando Lula viu que a imagem de esquerda o prejudicava, fez a "Carta aos brasileiros" (em 2002). É a culminação dessa primeira mudança de pele, de querer ser o pai dos ricos e a mãe dos pobres. A "Carta" era Lula chegando à posição de centro, de social-democrata com uma pitada de populismo. Mas isso só vai se tornar possível pelo carisma que ele tem. Um puta carisma. Fernando Henrique faria provavelmente o que ele fez, ampliaria o Bolsa Família, cooptaria a esquerda, os sindicatos, mas ele não tinha o carisma, esse capital imaginário básico. Lula é um ex-pobre. A razão maior do sucesso é isso.
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Lula tem popularidade também na comunidade internacional, principalmente na Europa. Ele reencarnou, na mentalidade europeia, o bom selvagem?
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Claro. Para o europeu, isso está mais forte ainda. No início, Lula era o bom selvagem, era a USP olhando a selva industrial do ABC paulista. Um diamante bruto. A esquerda tradicional achava que ia lapidar esse diamante bruto, mas aí vem o lado Chapolin Colorado de Lula: eles não contavam com a astúcia dele. Até hoje, os europeus tem a coisa do bom selvagem, do homem que veio da miséria. O brasileiro, para o europeu, representa a mesma coisa que o nordestino para o paulista. Há essa homologia, dos tupinambás até Lula e Marina Silva. As pessoas acharam que ele seria suficientemente fraco pra aceitar essa imagem. Mas aí ele faz o jogo das elites brasileiras, que é a conciliação e o jeitinho. E com uma imagem de esquerda, mais populista, sem desagradar aos setores conservadores. No poder, ele vai fazer um governo social-democrata com tintas populistas, com uma grande capacidade de comunicação. Ele é o Ratinho da política. Tem a capacidade de fazer com que a grande massa se identifique com ele. Lula é um de nós, pobres, que chegou lá. Não é apenas um pobre que está no poder, é o emergente que chegou lá, o pobre que deu certo.
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O povo se identifica com Lula porque ele chegou lá com todas as tramóias possíveis. O pobre não é tão bonzinho quanto se imagina. Isso realmente foi uma grande mudança retórica. Até Fernando Henrique, você só tinha o falar bonito das elites. Lula não fez mudança nenhuma no sentido político. Ele aprofundou a lógica da social-democracia. O governo dele foi maravilhoso porque ele foi competente ao armar um sistema de sustentação no Congresso, de mobilização dos partidos picaretas, contou com uma boa conjuntura internacional, o que Dilma provavelmente não vai ter, e teve uma ótima equipe econômica.
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Agora, durante a crise econômica mundial, houve as sacadas dele, de intuir que os pobres deveriam continuar comprando, de estimular o crédito...
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Ele tem intuições geniais. Lula é um cara extremamente inteligente, tem uma compreensão imensa. Ele se cercou de uma equipe econômica muito competente, com Henrique Meirelles, Guido Mantega. O microcrédito estava na moda, vinha da Índia, ele não foi inventor de nada, mas foi um comensal que soube escolher a comida - às vezes por intuição, às vezes por sorte. E houve a ascensão da famosa classe C. A margem de manobra do Brasil não é tão grande. Tem uns bobocas aí dizendo que o PSDB não "propôs uma política alternativa". Não há política alternativa. Lula continuou fazendo a política de compensação distributivista, com o Bolsa Família. A herança e o futuro dele? Como o povo brasileiro é traíra e camaleão igual a Lula, nada garante a fidelidade do povo. Foi-se o tempo em que se tinha uma reserva moral da Nação.
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Dilma pode ser prejudicada por não ter a mesma retórica de Lula, e portanto não poder atender a esse público popular já acostumado com o ex-presidente?
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Não teve ninguém nessa posição de poder igual a ele. Havia muitos deputados com discurso populista, com linguagem popular, mas nunca chegaram a presidente. Nesse presidencialismo imperial, chegou ao poder uma pessoa com cara de pobre. É uma dupla retórica. A verbal, porque ele vai falar pro povão. E ele não é negão, não tem cara de índio, não tem a morenice bronzeada de Fernando Henrique. É o baixinho atarracado.
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Certo, mas essa presença da imagem de Lula não afetará Dilma?
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Não, porque ele vai ser uma eterna sombra. Ele vai ser o presidente simbólico do Brasil, o anjo da guarda de Dilma. É como se ela fosse a mãe do Brasil e Lula, o pai do Brasil. É um casal perfeito. Lula e Dilma funcionam como um casal. É como Néstor Kirchner e Cristina Kirchner. Pegando o que os filósofos chamavam de semelhança de família, ele tem um pedaço de Walesa e tem um pedaço de Argentina. Vai ser uma espécie de marido virtual. Ele é o marido virtual de Dilma, até que a mídia canse dele, o que vai levar algum tempo. Ele também se beneficiou do uso intensivo do marketing político. Collor já usava intensivamente o marketing. Essa retórica popular de Lula é uma invenção de Duda Mendonça, não tanto de João Santana, que já encontrou o prato feito. É a "sociedade do simulacro", de Jean Baudrillard. Ele já faz parte desse mundo onde a política é espetáculo.
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No marketing de Dilma, o publicitário João Santana usou a imagem de "mãe dos pobres". Isso ainda funciona no Brasil?
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Funciona muito com os grandes miseráveis do Bolsa Família, mas, para a classe C emergente, Lula é pai dos pobres e irmão dos remediados. Pobre só quer ser ex-pobre. A "mãe dos pobres" funciona com os miseráveis dos grotões. Lula é um alterego do emergente. E se prepare: o Brasil vai ser cada vez mais brega, porque os pobres estão subindo de vida (risos).
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Marina Silva disse que esse discurso de "mãe dos pobres" infantiliza os brasileiros. Há esse processo de infantilização na política, de reduzi-la a uma relação familiar?
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Marina fez a mesma coisa. Marina se vendeu com a imagem da boa selvagem, não mais por sua origem pobre, mas por sua origem amazôniza, de mulher que lutou pela sobrevivência. Ela se vendeu como uma outsider de luxo. A melhor maneira de se entender Marina é a aliança dela com o dono da Natura (o empresário Guilherme Leal). O apelo da Natura foi dar à cosmética um ar natural, de que não é laboratório. Ela é mais um produto da Natura da política. O PV sempre foi um partido de classe média, fisiológico, sempre viveu das migalhas do poder, mas conseguiu mobilizar a ideia da alteridade. Marina foi a candidata das classes médias urbanas cansadas da poluição e etc. Ela discursa para as camadas médias. É sempre o jogo simbólico de ex-pobre, de ex-povo da floresta (porque agora tem isso)... Ex-guerrilheiro não serve.
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A experiência na guerrilha influencia a personalidade política de Dilma? Marcará a imagem dela na presidência?
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Não. Foi coisa do passado. No discurso de posse, ela deixou a vida guerrilheira dela bem pro finzinho. Aí mandou levar as mulheres que estavam presas com ela, explorando mais esse passado como uma forma de coragem e firmeza. A luta armada no Brasil nunca foi popular. Logo que o PT foi pra TV, o povo passou a chamar os petistas de "presos torturados"... Eles diziam: "Eu fui preso, torturado..." E não deu voto. Lula nunca foi uma comunista. A verdade é que a esquerda nunca teve público. O povo gosta de capitalismo, de grana. O que move o Brasil é a usura, o que fez Lula foi a barriga, a vontade de prosperar, aquilo que os evangélicos vendem como prosperidade. A guerrilha não fede nem cheira. A guerrilha nunca entrou no imaginário popular. Nós, ex-guerrilheiros, sentimos isso e ficamos quietos.



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